terça-feira, 27 de novembro de 2012

Leite



   Debora era uma advogada conceituada na área trabalhista. 39 anos, separada, dois filhos (15 e 12 anos).  Sua carreira ia bem até que um problema sério com o álcool quase botou tudo a perder. Abandonou o trabalho, assim como perdeu o marido, Thomaz,  e a guarda dos filhos. Resolveu se tratar. Limpa a 9 meses, arrumou outro emprego e usou suas economias para comprar uma chácara em Águas mornas, distante apenas 38 km de Florianópolis.
  Como fazia todos os dias, levantou-se e foi ordenhar mimosa, uma vaca holandesa premiada. Ordenhar mimosa sempre foi uma ótima terapia. Assim que terminou, chamou a empregada:

-- Helena, pode servir a mesa. Aqui está o leite. Deixa eu tomar um copo antes de ir pro banho. Hum... delicioso. Prepare um café forte sim?
 -- Mas senhora, isso não tá com cara de leite não. Tá amarelo. Será que a vaca mijou no balde e a senhora não viu?
 -- Helena, pare de brincadeiras, acabei de tomar um copo e esse leite está divino. Mimosa sempre deu leite bom, aliás, vou tomar outro copo. Prepare o café que eu vou pro banho.

  Helena olha para o líquido amarelo no balde. Uma espuma cremosa cobre a parte de cima. "Vou provar", pensa. Vai ver que é um leite especial, e, afinal, a vaca era estrangeira. Provou, e teve um choque. Era cerveja! E que cerveja. Maravilhosamente boa. Mas isso não era importante, a patroa estava em apuros e ela tinha que ajudar. Corre pro telefone e liga para Thomaz:

-- Seu Thomaz, o senhor precisa vir aqui. A dona Debora apareceu com um balde de cerveja, e disse que tirou da mimosa. Acho que ela não tá bem.
 -- Puta que pariu, só me faltava essa agora. Será que a maluca da Debora não aprendeu nada? Mas que merda. Segura ela aí que eu tô indo, e não deixa ela beber.

Helena esconde a cerveja. Não sem antes tomar um copo. "Mas que cerveja boa essa." Tinha acabado de colocar tudo em um galão vazio quando Debora sai do banho. Estava nua e cantava o Tchãn.

-- Ahh que banho gostoso... Helena, fez o café? Ah, esquece o café. Vou tomar só leite hoje. Cadê?
-- Vish dona Debora, virei o balde sem querer, e acabei de limpar tudo agorinha.
-- Mas que droga, sua incompetente. Agora vou ter que esperar até amanhã pra poder ordenhar mimosa de novo. Mas que merda. Mas que barulho é esse? É uma caminhonete?
-- Desculpa, dona Debora, a senhora bebendo cerveja depois de tanto tempo não é bom. Pensa nos filhos...
-- Cerveja? - Interrompe Debora. -- Tá maluca Helena. Me parece que quem bebeu foi você. Onde é que tem cerveja nessa casa? Tô limpa faz nove meses, porra.

Nisso Thomaz entra na casa. Debora não acredita.

-- Thomaz? O que você está fazendo aqui, seu porco?
-- A Helena me chamou porque tu apareceu com cerveja em casa, caralho. E vai botar uma roupa, que pouca vergonha é essa?
-- Eu ponho a roupa se eu QUISER. A casa é MINHA e eu posso andar pelada na minha casa. E que merda de história é essa de cerveja, Helena? Me mostra então.
-- Tá aqui ó - Põe o galão na mesa - Tava no balde que a senhora trouxe.
-- Mas isso é leite. LEITE! Eu mesma tirei da mimosa. Tá querendo arrumar desculpa pra ir pra rua é? Me processar, é isso? Me dá outro copo que eu tô com sede.
-- Nada disso - Interrompe Thomaz - Onde já se viu leite amarelo, com espuma e gás? Se bem que a vaca é holandesa... Deixa eu provar. Porra, que cerveja boa. Onde tu conseguiu isso, Debora?
-- Que cerveja o que, já disse que isso é LEITE. Não é possível que você não veja. Helena, tu tá de conchavo com ele? O que tá acontecendo aqui. E me dá meu leite.

   Debora pula em direção a mesa. Thomaz tenta impedir. Engalfinham-se. Helena corre em busca de socorro. Por um momento parece que Thomaz vai conseguir subjugar Debora, mas com um golpe rápido, ela agarra-se ao saco dele.  Aos gritos de "Penico, penico" Thomaz se rende.
Helena volta com ajuda: Encontrou um vendedor de melancias na rua, que chamou a polícia. Quando entram na casa encontram Debora bebendo avidamente o conteúdo do galão, enquanto Thomaz encolhe-se em um canto e pede em vão: "Onde tu conseguiu essa cerveja, Debora?" Vão todos presos.
   Na delegacia ficou decidido. Debora está descontrolada. Chamam um psiquiatra que recomenda a internação por tempo indeterminado. O diagnóstico: Alucinação causada por abstinência. Thomaz insiste energicamente, quer saber a todo custo onde Debora conseguiu a cerveja, mas ela só repete "Leite, leite." Algumas investigações provam que ela não comprou cerveja em lugar nenhum.
   Helena ficou cuidando da chácara, e ordenha mimosa religiosamente, todos os dias, mas a vaca só dá leite. Thomaz vai sempre olhar, e volta cada vez mais triste. Por mais que procure, nunca mais achou uma cerveja tão boa. Gastou uma verdadeira fortuna para mandar analisar o que restou do galão, e recebeu como resposta que era uma Weiss de qualidade excepcional, com certeza artesanal, pois não havia nada parecido no mercado, coisas da vida.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Animal



  Marília chega em casa depois do trabalho. Está cansada, o dia no restaurante foi difícil como sempre e ela já sabe com antecedência que Alfredo não cumpriu sua parte das tarefas domésticas. Pensa alto na escada que dá acesso ao quinto andar:

-- Vagabundo filho da puta, nem levou o lixo. Maldita hora em que ele foi demitido. 

  Mas também, fazer um bolão de apostas sobre quando que Chiquinho, o filho do dono da empresa, iria assumir a zoofilia foi forçar a barra. Ganhar o bolão quando Chiquinho fugiu com o dálmata do Seu Aparício do RH foi demais pro seu Francisco. Foi pra rua.
  Marília gira a chave e entra em casa. Quase desmaia, e ao mesmo tempo fica surda. Animais de diversas raças, tamanhos e cores. Gatos, cachorros, porcos, cacatuas, tartarugas, um mini pônei com a faixa "Beto Carreiro World", uma avestruz e, a cereja do bolo, em um canto afastado, uma vaca holandesa premiada. Marília se descontrola e grita:

-- Que porra é essa, Alfredo?

  Automáticamente todos os animais começam a gritar, latir, miar, tartarugar, relinchar e sabe-se lá mais o que. Em pânico, Marília pensa em se jogar pela janela. É quando uma voz de comando autoritária acaba com a zorra. "CALADOS!!" Era Chiquinho. Todos os animais se calam. O papagaio começa a contar uma piada, mas é fuzilado pelo olhar de Chiquinho e se cala. Ao seu lado, protetora e ameaçadoramente, está o Dálmata. Olha pra Marília e mostra os dentes.

-- Chiquinho, o que está acontecendo, cadê o Alfredo?
-- Está ali no canto, atendendo os clientes.

  É então que Marília percebe. Tem vários seres humanos na sala, em um canto afastado, estavam atrás da vaca. Parecem endinheirados. Ela reconhece uns dois ou tres rostos dos noticiários na TV, políticos, parecem e, peraí, aquele ali não joga no Santos?
  Marília começa a tremer, e olha pra janela de novo. A tensão no ar é tanta que se poderia cortar com uma faca. O papagaio começa a falar de novo e é interrompido pelo orangotango. "De onde saiu esse macaco???" Marília começa a chorar. Alfredo resolve intervir, pede licença ao senador e vai acalmar a esposa, que insiste em olhar para a janela.

-- Oi meu amor, tu me parece um pouco nervosa, quer um chá?
-- Nervosa, Alfredo? NERVOSA? Por que eu estaria nervosa, só porque tem um serengueti aqui em casa? Nãããããão, eu estou calmíssima. Não quero chá, me alcança aquela garrafa de uisque. E quem é aquele ali, é o rapaz daquela banda colorida? Se fosse o Daniel pelo menos...
-- Ah mas o Daniel vem mais tarde, ele quer conhecer a mimosa.
-- Mimosa, a vaca? Como assim? Alfredo, tu tá de cafetão desses bichos todos?
-- Marília, não fala cafetão que pega mal. A clientela é fina e paga bem. Aqui nós oferecemos um serviço de acompanhamento animal. Última moda na europa. O Neymar, por exemplo, quer experimentar o orangotango e a tartaruga. Me parece que o Adriano quer conhecer um ornitorrínco, mas tá meio difícil de conseguir um...
-- Alfredo, isso é ridículo, esse dálmata está me encarando de um jeito sinistro, e tenho quase certeza de que é ilegal o que está acontecendo aqui. Vou pra casa da mamãe.

  E Marília corre pra se jogar pela janela. Por sorte é impedida pelo Senador e pelo vocalista da banda colorida, que a seguram em tempo.

  Alfredo ficou muito, muito rico, comprou um circo e teve que mudar-se para a Somália, pois estava sendo investigado pela Interpol, tráfico de animais em extinção. Chiquinho casou-se com o dálmata, e alugou a barriga de uma dog alemão de raça pura, e agora espera sua segunda ninhada. É um pai responsável e amoroso, além de ter feito as pazes com o Seu Aparício, que as vezes aparece pra visitar a família feliz. Marília foi embora, continua trabalhando no restaurante e casou-se de novo, com Orlando, um dentista. O único problema é que, quando Orlando brinca com algum cachorro na rua, Marília tem uma vontade quase incontrolável de se jogar pela janela. Coisas da vida.